O zelador do edifício, que também era o zelador da moral dos moradores, foi unânime: o rapaz sempre se portou dentro dos conformes. Fechava a porta do apartamento por fora depois que saía e por dentro depois que entrava, além de ter um olho-mágico para espiar antes de abrir. Mulheres, que ele visse, nunca botou pra dentro. Empregada não tinha, só talvez um criado mudo, pois quando ele não estava e o telefone tocava, ninguém atendia.
A faxineira de uma vez por semana era testemunha ocular de que nunca viu nada. Se ele possuía vida íntima, era dentro do armário embutido. Todos no edifício daquele lado sabiam: abrindo a porta do armário tinha um varalzinho pra gravata, onde podia muito bem se pendurar uma mamulenga vazia que nem aquela. Mas vivia de chave passada e não sabia onde enfiada, não que ela, faxineira que dava referências, fosse de mexer nesses particulares.
O já qualificado solteiro confessou que realmente. Ele coabitava a sós. Sempre sonhou com algo no gênero e um dia viu, numa revista masculina especializada, o seu sonho tornado realidade: a mulher ideal, não uma simples mulher, mas uma verdadeira boneca. Recortou o cupom e encomendou uma com uma peruca sobressalente para variar. Só ele sabia a dupla ansiedade com que esperou o dia da entrega.
Ela chegou de porte leve, de corpo completa e tão perfeita depois de inflada, que ele mal pôde crer quando, ajoelhado a seus pés sentiu uma marquinha em relevo nas solas que beijava, onde se lia Life Size Dolls Inc. Na intimidade, porém, chamava-a de Tezinha e não tinha com ela outros momentos. Isso morena. Quando estava de loura a esvaziava um pouco e chamava-a de Fofinha. Essa a sua vantagem: podia ser chamada pelos nomes que na hora ele bem quisesse, sem precisar se envolver com as mencionadas. Não se justificava, portanto, a atitude daquele senhor — diante de cuja senhora ele sempre demonstrou o mais respeitoso desprezo —, invadindo o seu domicílio com indignação e compostura.
Foi um minuto de constrangedor silêncio: podia-se ouvir até o tique-taque do relógio, se ele não fosse digital. De repente os dois estampidos, o cheiro de tiro e de vinil perfurado. Os gritos das mulheres do edifício sãs e salvas lá fora, o corre-corre no corredor. E sua Tezinha, Fofinha, murcha, estrebuchada, a peruca subitamente desproporcional rolando longe.
Como o indigitado senhor alegou em juízo perfeito, foi privação dos sentidos. Seu advogado, aliás, deu-lhe inteira razão. Quem, cego pela paixão, alguma vez errou o alvo? Ao flagrá-la ali, assim, nos braços de outrem, ele julgou que fosse aquela que ele mantinha no recesso do seu próprio armário embutido, momentaneamente esquecido, senhores jurados, de que tais bonecas são fabricadas em série.
Fortuna
Fonte: Texto extraído do livro “Acho tudo muito estranho (já o prof. Reginaldo, não)”, Editora Anita Garibaldi – São Paulo, 1992, pág. 73.
A faxineira de uma vez por semana era testemunha ocular de que nunca viu nada. Se ele possuía vida íntima, era dentro do armário embutido. Todos no edifício daquele lado sabiam: abrindo a porta do armário tinha um varalzinho pra gravata, onde podia muito bem se pendurar uma mamulenga vazia que nem aquela. Mas vivia de chave passada e não sabia onde enfiada, não que ela, faxineira que dava referências, fosse de mexer nesses particulares.
O já qualificado solteiro confessou que realmente. Ele coabitava a sós. Sempre sonhou com algo no gênero e um dia viu, numa revista masculina especializada, o seu sonho tornado realidade: a mulher ideal, não uma simples mulher, mas uma verdadeira boneca. Recortou o cupom e encomendou uma com uma peruca sobressalente para variar. Só ele sabia a dupla ansiedade com que esperou o dia da entrega.
Ela chegou de porte leve, de corpo completa e tão perfeita depois de inflada, que ele mal pôde crer quando, ajoelhado a seus pés sentiu uma marquinha em relevo nas solas que beijava, onde se lia Life Size Dolls Inc. Na intimidade, porém, chamava-a de Tezinha e não tinha com ela outros momentos. Isso morena. Quando estava de loura a esvaziava um pouco e chamava-a de Fofinha. Essa a sua vantagem: podia ser chamada pelos nomes que na hora ele bem quisesse, sem precisar se envolver com as mencionadas. Não se justificava, portanto, a atitude daquele senhor — diante de cuja senhora ele sempre demonstrou o mais respeitoso desprezo —, invadindo o seu domicílio com indignação e compostura.
Foi um minuto de constrangedor silêncio: podia-se ouvir até o tique-taque do relógio, se ele não fosse digital. De repente os dois estampidos, o cheiro de tiro e de vinil perfurado. Os gritos das mulheres do edifício sãs e salvas lá fora, o corre-corre no corredor. E sua Tezinha, Fofinha, murcha, estrebuchada, a peruca subitamente desproporcional rolando longe.
Como o indigitado senhor alegou em juízo perfeito, foi privação dos sentidos. Seu advogado, aliás, deu-lhe inteira razão. Quem, cego pela paixão, alguma vez errou o alvo? Ao flagrá-la ali, assim, nos braços de outrem, ele julgou que fosse aquela que ele mantinha no recesso do seu próprio armário embutido, momentaneamente esquecido, senhores jurados, de que tais bonecas são fabricadas em série.
Fortuna
Fonte: Texto extraído do livro “Acho tudo muito estranho (já o prof. Reginaldo, não)”, Editora Anita Garibaldi – São Paulo, 1992, pág. 73.
Posted by alone Dated07jul2011
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