Abri o portão, o cachorro foi saindo calmamente, acenou com o rabo antes de ganhar a rua da casa da praia. Ela passou por mim numa nuvem perfumada, antes que eu fechasse o portão, óculos escuros, guarda-sol, o maiô preto antiquado. Esperei ela desaparecer na direção do mar. Depois toquei para lá.
A paisagem mudou, pensei, estava se abrindo.
Gostei de chegar perto do grupo. Zu, a empregada (Zu para lá e para cá o tempo todo, como o vento), o filho maior e o menor ocupados com um castelo de areia desconstruído. Ela já devia estar na água. Mas não saía de lá. Esperei.
Talvez estivesse caminhando na areia. Um ponto preto desaparecia na direção da gruta, no fim da praia.
Fui atrás dela. Onde ela estivesse eu preferia estar.
Um bando de siris atravessou na minha frente para se enterrar na areia. Um novo vira-lata me acompanhou por um bom tempo e de repente saiu pela direita. Um garotinho barrigudo com um balde de plástico na cabeça me encarou do alto de um banco de areia, escondendo os olhos do sol, nariz branco de protetor solar. Perdeu o equilíbrio e caiu sentado.
Quando olhei de novo para a frente levei um susto, ela vinha voltando. Apertei o passo mas não querendo chegar de jeito nenhum.
Ela chegou.
Passou direto.
Antes, ri para ela. Sempre rio para alguma coisa, isso é verdade.
Ela continuou andando, mas olhou para trás, levantou os óculos até a testa e riu de volta.
Uma onda quente morreu nos meus pés, a espuma sumindo devagar. Foi o que vi antes de voltar os olhos para ela, o corpo tão branco de quem nunca jamais tomou sol, o maiô de freira, as pegadas pouco a pouco cobertas pela água. Na dúvida entre ir em frente ou voltar, fiquei parado, como se tivesse perdido um ente querido.
*
Molhei os pés com a mangueira, no jardim. Interrompi uma procissão de formigas que escalava a roseira de uma rosa só. A copa de um coqueiro balançava no azul da noite recém- chegada, num dos quintais da rua. O cachorro voltou.
Piso nas lajotas frescas da sala, teimo em ligar o rádio que não funciona e procurar uma fruta que já não há. O cachorro vem adernando o rabo de tal forma que as patas traseiras esfregam o chão.
Folheio uma das revistas que sempre estiveram por aqui. A vida de um beija-flor em uma página. Decido fazer alguma coisa para comer. Ele sabe. Afeiçoou-se ao cardápio, dança ao som do rádio mudo. Engraçado, não me lembro de seus latidos.
Prestamos atenção: a vizinha também já estava em casa. Ouvimos sua voz. Por que os meninos estiveram tão quietos? São a minha banda de música, anunciam a chegada da mãe.
Ela deve estar em pé na ponta da cozinha, de banho tomado, observando os garotos. O maiô goteja no varal. Morcego molhado. Agora eles chutam a bola, que atravessa o muro e quiçá do nosso lado. É música. Ela diz “ahh!" Saímos e assistimos. A bola despetala a rosa. As formigas veem um planeta inteiro cair.
Cadão Volpato
Texto extraído do livro “Geração 90 — Manuscritos de computador”, Editora Boitempo – 2001, São Paulo (SP), pág. 255. Organização de Nelson de Oliveira.
A paisagem mudou, pensei, estava se abrindo.
Gostei de chegar perto do grupo. Zu, a empregada (Zu para lá e para cá o tempo todo, como o vento), o filho maior e o menor ocupados com um castelo de areia desconstruído. Ela já devia estar na água. Mas não saía de lá. Esperei.
Talvez estivesse caminhando na areia. Um ponto preto desaparecia na direção da gruta, no fim da praia.
Fui atrás dela. Onde ela estivesse eu preferia estar.
Um bando de siris atravessou na minha frente para se enterrar na areia. Um novo vira-lata me acompanhou por um bom tempo e de repente saiu pela direita. Um garotinho barrigudo com um balde de plástico na cabeça me encarou do alto de um banco de areia, escondendo os olhos do sol, nariz branco de protetor solar. Perdeu o equilíbrio e caiu sentado.
Quando olhei de novo para a frente levei um susto, ela vinha voltando. Apertei o passo mas não querendo chegar de jeito nenhum.
Ela chegou.
Passou direto.
Antes, ri para ela. Sempre rio para alguma coisa, isso é verdade.
Ela continuou andando, mas olhou para trás, levantou os óculos até a testa e riu de volta.
Uma onda quente morreu nos meus pés, a espuma sumindo devagar. Foi o que vi antes de voltar os olhos para ela, o corpo tão branco de quem nunca jamais tomou sol, o maiô de freira, as pegadas pouco a pouco cobertas pela água. Na dúvida entre ir em frente ou voltar, fiquei parado, como se tivesse perdido um ente querido.
*
Molhei os pés com a mangueira, no jardim. Interrompi uma procissão de formigas que escalava a roseira de uma rosa só. A copa de um coqueiro balançava no azul da noite recém- chegada, num dos quintais da rua. O cachorro voltou.
Piso nas lajotas frescas da sala, teimo em ligar o rádio que não funciona e procurar uma fruta que já não há. O cachorro vem adernando o rabo de tal forma que as patas traseiras esfregam o chão.
Folheio uma das revistas que sempre estiveram por aqui. A vida de um beija-flor em uma página. Decido fazer alguma coisa para comer. Ele sabe. Afeiçoou-se ao cardápio, dança ao som do rádio mudo. Engraçado, não me lembro de seus latidos.
Prestamos atenção: a vizinha também já estava em casa. Ouvimos sua voz. Por que os meninos estiveram tão quietos? São a minha banda de música, anunciam a chegada da mãe.
Ela deve estar em pé na ponta da cozinha, de banho tomado, observando os garotos. O maiô goteja no varal. Morcego molhado. Agora eles chutam a bola, que atravessa o muro e quiçá do nosso lado. É música. Ela diz “ahh!" Saímos e assistimos. A bola despetala a rosa. As formigas veem um planeta inteiro cair.
Cadão Volpato
Texto extraído do livro “Geração 90 — Manuscritos de computador”, Editora Boitempo – 2001, São Paulo (SP), pág. 255. Organização de Nelson de Oliveira.
Fonte: releituras.com
Posted by alone Dated06aug2011
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