Em qualquer altura, há sempre uma série de coisas na nossa vida que não pode ser adiada. Continuamente correndo em alguma direcção, nunca nos é possível parar.
— Gostaria muito, mas agora não dá. Fica para uma próxima oportunidade...
Não tive qualquer pejo em desfazer (não adiar, desfazer) todas as imperiosas frivolidades do dia seguinte, deixar o telemóvel em casa e partir.
O secretismo da aventura conferia-lhe um sabor acrescido, como um desejo que não contamos a ninguém, receosos de que perca alguma força.
Ninguém entendia o meu sorriso e isso dava-me um certo e inexplicável gozo.
— Os extremos tocam-se — costumamos ouvir dizer. Havia na minha obsessão uma espécie de libertação. Eu esvaziara por completo a mente. Nada que não tivesse que ver com Sofia Salgado conseguiria vir à tona.
Conduzia pela manhã limpa e ensolarada, sentindo o vento fresco na face. A música alta espalhava pelo meu corpo a plenitude de um poder desconhecido. Desfrutava largamente a liberdade que se me oferecia e deleitava-me com a antecipação dos dias vindouros. A minha amiga imaginação operava uma miríade de delícias que me esperariam em Areias de Prata.
Aquilo que eu desejava com a intensidade com que nunca desejara nada... Nem podia simplesmente imaginar.
Parei num motel para dormir. Deitado na cama, um peso caiu como chumbo sobre a minha cabeça, enquanto sombras se moviam pelo quarto e os meus braços e pernas se agitavam sob lençóis suados.
Eh-pá-porra-meu!-eu-vou-apenas-passar-férias-pá-há-tanto-tempo-que-não-tenho-férias-pá! — ribombava uma voz interior, protectora.
Uma camada intermédia do meu cérebro procurava convencer-me de que ia simplesmente ter as férias que há muito desejava. Areias de Prata era um lugar pejado de belas paisagens naturais, o ideal para o repouso da alma. E quem sabe não aproveitaria ainda para fazer uma fotorreportagem vendável. Mas a última camada do meu cérebro — que a camada intermédia tentava a todo o custo subjugar com o meu deliberado apoio — sabia que a minha viagem tinha uma única e exclusiva razão.
Afinal, Sofia Salgado estava ainda bem viva dentro de mim. Julgara-a adormecida, imersa num coma profundo, mas agora tornava-se evidente que ela latejava na polpa da minha alma, bastando uma fresta para a fera enjaulada saltar...
Ao abandonar o motel, e mediante a aproximação de Areias de Prata, o nervosismo e a inquietação iam dando machadadas na antecipação do deleite. Havia qualquer coisa que me enevoava o espírito, como uma bruma caindo sobre o bosque. E não era o receio de não a encontrar.
Guardaria Sofia Salgado a centelha intangível que incendiava a minha alma? Teria o núcleo da sua identidade sobrevivido ao tempo, à pressão e a vulgaridade do mundo exterior?
Estes ecos de angústia repercutiam-se no fundo do meu ser, qual som de uma trovoada no mar tumultuoso ressoando pelo barco à noite.
Numa tarde de sol e céu azul, submergi lentamente num mar de mel ao ler numa placa: A-r-e-i-a-s d-e P-r-a-t-a. Todas as letras pareciam vestidas de uma cintilação e cor especiais. Encostei o carro antes de transpor a placa.
Tchic! Tchic! Tchic! — era um daqueles momentos em que o som de registo da minha máquina fotográfica me arranhava docemente a alma.
(Mantida a grafia do português de Portugal).
Manuel Matos Monteiro
Fonte: releituras.com
— Gostaria muito, mas agora não dá. Fica para uma próxima oportunidade...
Não tive qualquer pejo em desfazer (não adiar, desfazer) todas as imperiosas frivolidades do dia seguinte, deixar o telemóvel em casa e partir.
O secretismo da aventura conferia-lhe um sabor acrescido, como um desejo que não contamos a ninguém, receosos de que perca alguma força.
Ninguém entendia o meu sorriso e isso dava-me um certo e inexplicável gozo.
— Os extremos tocam-se — costumamos ouvir dizer. Havia na minha obsessão uma espécie de libertação. Eu esvaziara por completo a mente. Nada que não tivesse que ver com Sofia Salgado conseguiria vir à tona.
Conduzia pela manhã limpa e ensolarada, sentindo o vento fresco na face. A música alta espalhava pelo meu corpo a plenitude de um poder desconhecido. Desfrutava largamente a liberdade que se me oferecia e deleitava-me com a antecipação dos dias vindouros. A minha amiga imaginação operava uma miríade de delícias que me esperariam em Areias de Prata.
Aquilo que eu desejava com a intensidade com que nunca desejara nada... Nem podia simplesmente imaginar.
Parei num motel para dormir. Deitado na cama, um peso caiu como chumbo sobre a minha cabeça, enquanto sombras se moviam pelo quarto e os meus braços e pernas se agitavam sob lençóis suados.
Eh-pá-porra-meu!-eu-vou-apenas-passar-férias-pá-há-tanto-tempo-que-não-tenho-férias-pá! — ribombava uma voz interior, protectora.
Uma camada intermédia do meu cérebro procurava convencer-me de que ia simplesmente ter as férias que há muito desejava. Areias de Prata era um lugar pejado de belas paisagens naturais, o ideal para o repouso da alma. E quem sabe não aproveitaria ainda para fazer uma fotorreportagem vendável. Mas a última camada do meu cérebro — que a camada intermédia tentava a todo o custo subjugar com o meu deliberado apoio — sabia que a minha viagem tinha uma única e exclusiva razão.
Afinal, Sofia Salgado estava ainda bem viva dentro de mim. Julgara-a adormecida, imersa num coma profundo, mas agora tornava-se evidente que ela latejava na polpa da minha alma, bastando uma fresta para a fera enjaulada saltar...
Ao abandonar o motel, e mediante a aproximação de Areias de Prata, o nervosismo e a inquietação iam dando machadadas na antecipação do deleite. Havia qualquer coisa que me enevoava o espírito, como uma bruma caindo sobre o bosque. E não era o receio de não a encontrar.
Guardaria Sofia Salgado a centelha intangível que incendiava a minha alma? Teria o núcleo da sua identidade sobrevivido ao tempo, à pressão e a vulgaridade do mundo exterior?
Estes ecos de angústia repercutiam-se no fundo do meu ser, qual som de uma trovoada no mar tumultuoso ressoando pelo barco à noite.
Numa tarde de sol e céu azul, submergi lentamente num mar de mel ao ler numa placa: A-r-e-i-a-s d-e P-r-a-t-a. Todas as letras pareciam vestidas de uma cintilação e cor especiais. Encostei o carro antes de transpor a placa.
Tchic! Tchic! Tchic! — era um daqueles momentos em que o som de registo da minha máquina fotográfica me arranhava docemente a alma.
(Mantida a grafia do português de Portugal).
Manuel Matos Monteiro
Fonte: releituras.com
Posted by alone Dated06sep2011
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