E enquanto a faca começou a pressionar a flácida pele da barriga, Alfredo começou a sentir a obesidade do momento. A tão temida hora de se despedir. A camisa acetinada não tivera força suficiente para barrar o fio da faca. Sem pedir licença, a arma branca começou a rasgar a pele, abrindo caminho para o resto do fio. Com voracidade súbita, a gordura engolia a lâmina que avançava afiadamente sob os tecidos. A ordem de dor já fora enviada pelo seu cérebro e o grito começava a ressonar vindo da laringe. Agora, talvez até os sanduíches do seu café da manhã já tivessem sido atingidos. A integridade da teia celular que cobria seu corpo tinha sido deliberadamente violada. A cor do sangue mudara. O rubro escurecia ameaçadoramente. O fígado! Lacre rompido. Corpo invadido. Órgão falido. A gordura da barriga de Alfredo, fruto dos opulentos e rudes hábitos alimentares, das rodadas etílicas com os amigos, vazava, escorria disformemente. Antes represada pela pele, agora liberta por um corte diagonal. Mal-cheiro! A faca deslizava pela barricada fofa e lipídica que não oferecia resistência para evitar o inevitável. O fio da faca untado em sangue. Alfredo pingava em vermelho. Como quando alguém corta a pele gelatinosa e flácida, simuladamente elástica, de um frango sangrento antes de prepará-lo para o jantar. Alfredo, um cidadão comum, socialmente privilegiado, vítima do acaso social, desfalecia antes de falecer. Abandonava sua história para virar memória. Deixava a mãe órfã de filho e juntava-se às estatísticas urbanas. Alfredo, um homem gordo e distraído, morrera porque cruzara seu caminho um homem magro e decidido. Decidido a não passar mais fome.
Israel Mendes
Fonte: releituras.com
Israel Mendes
Fonte: releituras.com
Posted by alone Dated04set2011
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