RAUL BRANDÃO in Os Pescadores
OLHÃO - Agosto -1922
“... Tenho de atravessar o Alentejo isolado e concentrado para chegar ao Algarve. É uma província farta, mas a aparência esquelética, a árvore triste a que arrancam a pele em vida, o monte solitário, meteram-me sempre medo. É a terra do ódio. Tudo em que a gente põe a vista é duro e hostil. Ainda o Alto Alentejo quer sorrir - mas o sorriso fica em meio, reservado e triste. Os pinheiros mansos agrupam-se e conversam baixinho uns com os outros para fugirem à solidão do deserto. ..No Baixo Alentejo, porém, os sobreiros, a cor da terra esfarrapada, o céu esbranquiçado, as lascas de pedra que reluzem como vidros negros e polidos, enchem a alma de monotonia e pesadelo. Uma grande fumarada levanta-se no fundo do deserto.
Os homens não se podem ver: um abismo separa o trabalhador do proprietário, que goza em Lisboa e que lhe deixa de quando em quando uma folha para desbravar. Desbravada, tira-lha. E esta solidão redu-lo a atroz realidade. Fica só e o ódio, sob a abóbada de pedra que encerra o extenso panorama, entregue ao tempo que não passa, à morte que não vem, à secura das almas, pior que a secura da terra. Resta-lhe o ódio: com o ódio enche o deserto e enche a própria vida. ..
De manhã saio em Olhão deslumbrado. Céu azul-cobalto - por baixo, chapadas de cal. Reverberação de sol, e o azul mais azul, o branco mais branco. Cubos, linhas geométricas, luz animal que estremece e vibra como as asas de uma cigarra. Entre os terraços, um zimbório redondo e túmido como um seio aponta o bico para o ar. E ao cair da tarde, sobre este branco imaculado, o poente fixa-se como um grande resplendor. É uma terra levantina que descubro; só lhe faltam os esguios minaretes. Duas cores e cheiro : branco, branco, branco, branco doirado pelo sol, que atingiu a maturidade como um fruto, pinceladas de roxo uniformes para as sombras, e um cheirinho suspeito a cemitério. O fruto que chega a este estado está a dois dedos do apodrecimento, e é talvez por isso que a ideia do sepulcro me não larga nas noites brancas e pálidas em que me julgo perdido num vasto campo funerário...
O céu aproxima-se de mim. Da açoteia chego às estrelas com a mão. A aragem do mar é tépida e o cheiro persiste... Voluptuosidade e morte... Tenho a sensação criminosa de apertar nos braços uma mulher que se entrega, no momento em que entreabre a boca sucumbida - num vasto campo-santo, onde os espectros imóveis e brancos, de sudário, olham e esperam. ..O fruto vai completar o seu destino. Cheira que tresanda.
Há meio século, Olhão, entranhado de salmoura e perdido no mundo, vivia só do mar. Todos se conheciam. Os que não eram marítimos, eram filhos ou netos de marítimos, contrabandistas uns e outros, pescadores costeiros e pescadores do alto que iam à cavala a Larache. A pesca costeira, a das caçadas, fazia-se com groseiras, grandes espinhéis, para o cachucho, o goraz, o safio, a carocha, o ruivo, a abrótea e a pescada; e com a arte da xávega, em calões e botes, puxando a tripulação o aparelho para terra, enquanto o arrais, numa pequena lancha, a calima, vigiava o lanço e dirigia a manobra. Havia muito peixe e a vida era extraordinária”...
(excerto do livro)
Posted by alone
Dated18fev11
Nenhum comentário :
Postar um comentário