— Não precisa levantar, mãezinha, eu lhe faço uma higiene aí na cama mesmo.
Não precisa levantar? Higiene? Quem é essa maluca que pretende me banhar?
A sogra a ajudou a sentar-se depois que a enfermeira retirou a sonda urinária.
— Vamos botar uma comadre, mãezinha?
Completamente alucinada a enfermeira. E eu é que tomei morfina.
Sinalizou que não queria comadre alguma e que iria ao banheiro. O médico recomendara que pouco falasse para evitar gases. A sogra a puxou pelos braços, a enfermeira empurrou-lhe o tronco. Estava de pé. A barriga sumira. Apoiou-se na cama, abraçada à tagarela.
— Não precisava tanto esforço, mãezinha. Que mãezinha corajosa!
— Quero lavar a cabeça — grunhiu.
— Mas eu lavava na cama, menina. Depois, lhe vestia uma camisola linda.
No banheiro, a água não esquentava. A enfermeira ajudou a tirar a gandola, aquela bata ridícula, aberta atrás. Com um olhar, expulsou a sogra.
— Estou saindo, mas não fica com vergonha, querida. Somos amigas, mas pouco íntimas, não é?
Nem íntimas, nem amigas somos.
Sentia-se uma índia velha, peitos imensos, arrastando-se sobre pés cansados. Um ano antes tivera sua vez de ser tocada para fora de um banheiro. Levantara da cama o pai, ainda pesado, quinze quilos mais magro depois da quimioterapia. Encorajava-o com palavras carinhosas, beijinhos no ombro. Chegando ao banheiro, ele a dispensou.
— Daqui, me viro.
Nunca lhe falara tão duramente. Também jamais fora carinhoso, com aquele carinho melado que os pais dispensam às filhas. Ele a carregara no colo quando bebê e até os 7 anos, quando, na madrugada, voltavam de festas, com a mãe. Mas não permitia que ela se sentasse em seu colo. "Vai se acostumar a sentar em colo de homem". A função de carregador de criança havia lhe sido transferida pela mãe, que caíra com a menina, pequenina, tropeçando numa calçada esburacada. Pesada, foi apontada como responsável por uma hérnia no pai no mesmo local onde o tumor se iniciara, quase trinta anos depois.
A água gelada espantou o suor de sua cabeça. A enfermeira continuava ali, querendo passar o sabão líquido em seu corpo.
— Mãezinha, você tem que guardar as forças para amamentar seu bebê.
A mãe não a amamentara. Era filha da geração Nestlé, aquela que era desmamada em uma semana de vida e que antes dos dez anos tirava as amídalas. Haveria alguma relação entre a ausência de leite materno e as amídalas eternamente inflamadas até serem extirpadas? Sem amídalas, pedira sorvete de chocolate, mas não sentiu qualquer sabor. Doía tudo, perdera o paladar. Fechou a cara para a enfermeira simpática que trouxera o sorvete e gelatina. Detestava gelatina.
Devolveu o café da manhã. Estava limpa, pronta a receber a criança que dormia, não queria mamar. Os seios começaram a pingar. Um enfermeiro tirou-lhe a temperatura, perguntou pela sonda.
— A outra enfermeira levou.
Acostumara-se a ver introdução e retirada de sondas urinárias na mãe, hemiplégica, na cama. A limpeza do orifício da traqueostomia. A sonda gástrica. Os hematomas nas mãos, pés, pernas, braços, veias que não suportavam cânulas, escalpos, invasões a um corpo que cismava em viver, apesar de tantas condições adversas. Acariciava os cabelos ralos da mãe crescendo depois de raspados na última cirurgia, cobrindo o calombo que modificava o formato de sua cabeça antes tão bonita, tão sólida. Às vezes, a mãe abria os olhos, quase sempre cerrados, combinando com o cenho franzido, a boca crispada. Balbuciava sons ininteligíveis, jogava beijos silenciosos. Respondia com beijos em suas mãos calejadas.
A mãe se encolhia quando sentia a presença de uma das enfermeiras. Despediu a mulher ao deparar-se com a mãe nua na sala, na cadeira de rodas.
— Que que tem demais? Aqui só tem mulher e ela nem entende direito o que acontece. Eu estava arrumando a cama.
A menina ensaiou um chorinho. Acomodou-a próxima ao seio, que ela abocanhou com vontade, sugando forte e provocando fisgadas no útero. Passou o indicador na bochecha rosada da menininha, que abriu os olhos e as narinas. A enfermeira sumira, a sogra saíra, os ruídos cessaram, a dor amainava aos poucos. O leite escorria da boca da criancinha, agarrada em seu peito, quente, ávida. Eu lhe dou o meu corpo, o meu leite, serei seu alimento único por seis meses. Depois, virão outras comidas, outras pessoas. Depois de seis meses.
Não precisa levantar? Higiene? Quem é essa maluca que pretende me banhar?
A sogra a ajudou a sentar-se depois que a enfermeira retirou a sonda urinária.
— Vamos botar uma comadre, mãezinha?
Completamente alucinada a enfermeira. E eu é que tomei morfina.
Sinalizou que não queria comadre alguma e que iria ao banheiro. O médico recomendara que pouco falasse para evitar gases. A sogra a puxou pelos braços, a enfermeira empurrou-lhe o tronco. Estava de pé. A barriga sumira. Apoiou-se na cama, abraçada à tagarela.
— Não precisava tanto esforço, mãezinha. Que mãezinha corajosa!
— Quero lavar a cabeça — grunhiu.
— Mas eu lavava na cama, menina. Depois, lhe vestia uma camisola linda.
No banheiro, a água não esquentava. A enfermeira ajudou a tirar a gandola, aquela bata ridícula, aberta atrás. Com um olhar, expulsou a sogra.
— Estou saindo, mas não fica com vergonha, querida. Somos amigas, mas pouco íntimas, não é?
Nem íntimas, nem amigas somos.
Sentia-se uma índia velha, peitos imensos, arrastando-se sobre pés cansados. Um ano antes tivera sua vez de ser tocada para fora de um banheiro. Levantara da cama o pai, ainda pesado, quinze quilos mais magro depois da quimioterapia. Encorajava-o com palavras carinhosas, beijinhos no ombro. Chegando ao banheiro, ele a dispensou.
— Daqui, me viro.
Nunca lhe falara tão duramente. Também jamais fora carinhoso, com aquele carinho melado que os pais dispensam às filhas. Ele a carregara no colo quando bebê e até os 7 anos, quando, na madrugada, voltavam de festas, com a mãe. Mas não permitia que ela se sentasse em seu colo. "Vai se acostumar a sentar em colo de homem". A função de carregador de criança havia lhe sido transferida pela mãe, que caíra com a menina, pequenina, tropeçando numa calçada esburacada. Pesada, foi apontada como responsável por uma hérnia no pai no mesmo local onde o tumor se iniciara, quase trinta anos depois.
A água gelada espantou o suor de sua cabeça. A enfermeira continuava ali, querendo passar o sabão líquido em seu corpo.
— Mãezinha, você tem que guardar as forças para amamentar seu bebê.
A mãe não a amamentara. Era filha da geração Nestlé, aquela que era desmamada em uma semana de vida e que antes dos dez anos tirava as amídalas. Haveria alguma relação entre a ausência de leite materno e as amídalas eternamente inflamadas até serem extirpadas? Sem amídalas, pedira sorvete de chocolate, mas não sentiu qualquer sabor. Doía tudo, perdera o paladar. Fechou a cara para a enfermeira simpática que trouxera o sorvete e gelatina. Detestava gelatina.
Devolveu o café da manhã. Estava limpa, pronta a receber a criança que dormia, não queria mamar. Os seios começaram a pingar. Um enfermeiro tirou-lhe a temperatura, perguntou pela sonda.
— A outra enfermeira levou.
Acostumara-se a ver introdução e retirada de sondas urinárias na mãe, hemiplégica, na cama. A limpeza do orifício da traqueostomia. A sonda gástrica. Os hematomas nas mãos, pés, pernas, braços, veias que não suportavam cânulas, escalpos, invasões a um corpo que cismava em viver, apesar de tantas condições adversas. Acariciava os cabelos ralos da mãe crescendo depois de raspados na última cirurgia, cobrindo o calombo que modificava o formato de sua cabeça antes tão bonita, tão sólida. Às vezes, a mãe abria os olhos, quase sempre cerrados, combinando com o cenho franzido, a boca crispada. Balbuciava sons ininteligíveis, jogava beijos silenciosos. Respondia com beijos em suas mãos calejadas.
A mãe se encolhia quando sentia a presença de uma das enfermeiras. Despediu a mulher ao deparar-se com a mãe nua na sala, na cadeira de rodas.
— Que que tem demais? Aqui só tem mulher e ela nem entende direito o que acontece. Eu estava arrumando a cama.
A menina ensaiou um chorinho. Acomodou-a próxima ao seio, que ela abocanhou com vontade, sugando forte e provocando fisgadas no útero. Passou o indicador na bochecha rosada da menininha, que abriu os olhos e as narinas. A enfermeira sumira, a sogra saíra, os ruídos cessaram, a dor amainava aos poucos. O leite escorria da boca da criancinha, agarrada em seu peito, quente, ávida. Eu lhe dou o meu corpo, o meu leite, serei seu alimento único por seis meses. Depois, virão outras comidas, outras pessoas. Depois de seis meses.
Olga de Moura e Mello
Posted by aloneDated 04dez10
Nenhum comentário :
Postar um comentário